Saturday, March 22, 2008

II (dos livres)

como quem olha um quadro,
te entendo aos poucos.
parece que com os anos vamos ficando mais parecidas, em vez de iguais.
Brincava com a chave enquanto pensava qual foi a última vez que tinha entrado no apartamento. Quarta ou quinta, tinha ido levar as roupas do hospital pra lavar. Quatrocentos e onze, o número repetido diversas vezes, em tantos ligares, pensava - e que coincidência. Abriu a porta e sentiu o frio na barriga de quem entra num sótão velho. Que estranho, há três dias era só uma casa. A estante cheia de livros, pensou quantos teria lido, e se ele se lembrava. Era ela que ia, a filha escolhida, comprar os livros na praça da Alfândega com o pai. E depois liam e discutiam, esse personagem é isso ou aquilo. Não é que ele não fosse uma boa pessoa, ele só era teimoso. Arrogante, chamavam. Mas na verdade era um intelectual, interessado nos mais diversos temas: mineralogia, engenharia naval, psicologia, química, canários, peixes...
Foi até o quarto e começou a encaixotar as roupas. Achou tudo, quanta coisa guardada e umas até sujas, o cheiro de cigarro. Encaixotando viu as cadernetas, várias. Globo, pequeninha. Sabia rue o pai sempre anotava, pra não esquecer, da lista do super às resoluções de ano novo. Numa dessa achou, escondidinho no meio de todo o resto da vida senhora do velho: "comprar: 3 isqueiros brancos, 3 isqueiros coloridos"
E lendo isso não pôde, não pode, pensou. Que era, mesmo, e ele queria comprar porque ela, ela sempre roubava os isqueiros do pai. Botava na bolsa e voltava sempre de isqueiro perdido de novo. E ele, sempre muito franco. Sempre dizia o que pensava e propôs que teria sempre isqueiros brancos, que seriam os dele e portanto intocáveis, e isqueiros coloridos, que seriam os próprios para roubo. Ela deitou na cama e queria chamar pai, eu te devolvo todos os teus isqueiros, mas ela sentiu o cheiro no travesseiro e não pôde.
Na saída, pegou um livro da prateleira, pensando que tantos ainda havia para encaixotar.